Foi durante muitos séculos, mais ou menos de 280 a.C. a 416, uma das maiores e mais importantes bibliotecas do Planeta. Este valoroso centro do conhecimento estava localizado na cidade de Alexandria, ao norte do Egito, a oeste do Rio Nilo, bem nas margens do Mediterrâneo.
Afirma-se que ela foi criada em princípios do século III a.C., em plena vigência do reinado de Ptolomeu II do Egito, logo depois de seu genitor ter se tornado famoso pela construção do Museum – o Templo das Musas -, junto ao qual se localizava a Biblioteca. Sua estruturação, a princípio, é geralmente creditada ao filósofo Demétrio de Falero, então exilado nesta região; muitos afirmam ser dele a concepção deste espaço cultural, depois de convencer o rei a transformar Alexandria em concorrente da glória cultural de Atenas.
Durante sete séculos esta Biblioteca abrigou o maior patrimônio cultural e científico de toda a Antiguidade. Ela não apenas continha um imenso acervo de papiros e livros, mas também incentivava o espírito investigativo de cientistas e literatos, transmitindo à Humanidade uma herança cultural incalculável. Ao que tudo indica, ela conservou em sua estrutura interna mais de 400.000 rolos de papiro, mas esta cifra pode, em alguns momentos, ter atingido o patamar de um milhão de obras. Sua devastação foi realizada gradualmente, até ela ser definitivamente consumida pelo fogo em um incêndio de origem acidental, atribuído aos árabes durante toda a era medieval.
Há várias histórias sobre prováveis incêndios anteriores ao que destruiu completamente a Biblioteca de Alexandria. Uma delas narra que Júlio César, passando por Alexandria ao perseguir seu rival Pompeu, membro do Triunvirato integrado também por César e Crasso, não só foi presenteado com a cabeça de seu inimigo, mas também com o amor de Cleópatra, irmã de Ptolomeu XII. Envolvido pela paixão, ele se apossa do trono por meio da força, entrega-o à Rainha e aniquila todos os tutores do antigo rei, com exceção de um, que foge das garras de César. Determinado a não deixar sobreviventes, ele manda incendiar todos os navios, incluindo os seus, para que ele não pudesse escapar pelo mar. O fogo teria se ampliado e atingido uma fração da Biblioteca.
Esta ancestral Biblioteca tinha a missão de conservar e disseminar valores da cultura de Alexandria. Muitas das obras que circulavam em Atenas foram para lá envidas; em seu âmbito ela abrigava matemáticos como Euclides de Alexandria, além de famosos intelectuais e filósofos, célebres nomes do passado. Lá também foram elaboradas significativas obras sobre geometria, trigonometria e astronomia, e igualmente sobre idiomas, literatura e medicina. Nesta mesma instituição eram produzidos e comercializados papiros.
Afirma-se que os 72 sábios judeus que verteram as Sagradas Escrituras Hebraicas para o grego, produzindo assim a renomada Septuaginta, reuniram-se justamente na Biblioteca de Alexandria para realizar este intento. A própria Cleópatra era apaixonada por este espaço, sempre à procura de novas histórias, sozinha ou acompanhada por César, outro amante da cultura. Este centro irradiador foi, com certeza, o mais importante ponto de referência cultural e científico da Antiguidade.
Foi edificada recentemente uma nova Biblioteca, inaugurada em 2003 nos arredores da sua antecessora. Ela também tem a ambição de se tornar um dos maiores e mais importantes pólos culturais dos nossos tempos. Sua ala principal, batizada como Bibliotheca Alexandrina, soma-se a outros quatro conjuntos especializados, laboratórios, um planetário, um museu científico e outro caligráfico, além de uma sala para congressos e exposições.
Uma Biblioteca ou Museu?
Segundo Stephen Greenblatt, no livro A Virada: O Nascimento do Mundo Moderno, o destino da imensa quantidade de livros em pergaminhos é muito bem exemplificado pelo fim da maior das bibliotecas do mundo antigo, localizado em Alexandria, a capital do Egito e centro comercial do Mediterrâneo oriental. Em local conhecido como Museu, quase toda a herança cultural das culturas grega, latina, babilônia, egípcia e judaica tinha sido reunida a um custo enorme e cuidadosamente arquivada para pesquisa.
Já a partir de 300 a.C., os reis que governavam Alexandria atraíram os principais eruditos, cientistas e poetas a sua cidade oferecendo-lhes empregos vitalícios no Museu com boas remunerações, isenções fiscais, comida e alojamentos gratuitos e acesso aos recursos quase ilimitados da biblioteca. Estabeleceram padrões intelectuais elevadíssimos e possibilitaram grandes descobertas e invenções.
A biblioteca de Alexandria não estava associada a uma doutrina ou escola filosófica em particular. Seu objetivo era a busca intelectual em todos os seus aspectos. Ela representava um cosmopolitismo global, uma determinação em reunir o conhecimento acumulado de todo o mundo e de aperfeiçoar e acrescentar mais a esse conhecimento.
Em seu apogeu, o Museu continha pelo menos meio milhão de rolos de papiro sistematicamente organizados, etiquetados e armazenados segundo um novo e engenhoso sistema que seu primeiro diretor parece ter inventado: a ordem alfabética.
As forças que destruíram essa instituição nos ajudam a entender por que o manuscrito de Lucrécio — Da Natureza –, recuperado apenas em 1417, fosse a única coisa que restava de uma escola de pensamento – o epicurismo – que tinha sido debatida intensamente em livros (papiros).
O primeiro veio em consequência de uma guerra: parte do acervo da biblioteca – rolos que estavam em depósitos próximos do porto – foi queimada acidentalmente em 48 a.C., quando Júlio César lutava para manter o controle da cidade.
Mas havia ameaça maior que a ação militar: a intolerância religiosa. O Museu, como seu nome indica, era um templo dedicado às Musas, as nove deusas que representavam as realizações da criatividade humana. Estava repleto de estátuas de deuses e deusas, altares e outros artefatos do culto pagão.
Os judeus e os cristãos que viviam em grandes números em Alexandria estavam incomodadíssimos com esse politeísmo. Não duvidavam que outros deuses existissem, mas achavam que esses deuses eram, sem exceção, demônios, ferrenhamente determinados a atrair a tola humanidade para longe da única e universal verdade: a sua crença. Consideravam todas as outras revelações e orações registradas naqueles milhares de rolos de papiros eram mentiras. A salvação repousava nas Escrituras.
Séculos de pluralismo religioso sob a égide do paganismo – três crenças vivendo lado a lado com espírito de tolerância sincrética – estavam chegando ao fim. No começo do século IV, o imperador romano Constantino começou o processo pelo qual o cristianismo tornou-se a religião oficial de Roma. Foi só uma questão de tempo antes que um sucessor fervoroso lançasse éditos que proibiam sacrifícios públicos e fechavam grandes locais de culto pagão. O Estado romano tinha dado início à destruição do paganismo.
Em Alexandria, o líder espiritual da comunidade cristã seguiu os éditos ao pé da letra. Litigioso e impiedoso, açulou hordas de fanáticos cristãos que saíam pelas ruas insultando os pagãos. Expondo os símbolos secretos dos “mistérios” pagãos ao ridículo público, mandou que os objetos religiosos fossem levados em desfile pelas ruas.
Pagãos religiosos insurgiram-se irritados. Enfurecidos, atacaram os cristãos com violência e então se recolheram atrás das portas trancadas do Museu. Armada de machados e marretas, uma turba igualmente alucinada de cristãos invadiu o templo, passou por cima de seus defensores e destruiu uma famosa estátua de mármore, marfim e ouro do deus Serapeon. Pior, o líder cristão ordenou que monges se instalassem nos templos pagãos, transformando-os em igrejas!
Alguns anos depois, Cirilo, o sobrinho sucessor do patriarca cristão, expandiu o escopo dos ataques, dirigindo sua ira religiosa dessa vez aos judeus. Exigiu a expulsão da grande população judia da cidade. O governador cristão moderado recusou e essa recusa foi apoiada pela elite intelectual pagã da cidade, cuja representante mais conhecida era a influente, lendariamente linda quando jovem, e imensamente culta Hipátia. Filha de um matemáticos, um dos famosos estudiosos residentes do Museu, havia ficado famosa por suas realizações em Astronomia, Música, Matemática e Filosofia.
As mulheres no mundo antigo muitas vezes tinham vidas reclusas, mas não ela. Na época dos primeiros ataques às imagens pagãs, ela e seus seguidores nitidamente mantiveram distantes, dizendo a si mesmos talvez que a destruição de estátuas animadas deixava intacto o que era realmente importante. Mas com a agitação contra os judeus deve ter ficado claro que as chamas do fanatismo não iriam morrer.
O fato de Hipátia ter apoiado Orestes, governador de Alexandria, quando ele se recusou a expulsar a população judia da cidade, incitou a circulação de boatos de que seu profundo envolvimento com Astronomia, Matemática e Filosofia – tão estranho, afinal, por parte de uma mulher – era sinistro: ela devia ser uma bruxa, praticar magia negra!
Em março de 415, a multidão incitada arrancou Hipátia de sua carruagem e a levou para um templo que simbolizava a destruição do paganismo para dar lugar à “única e verdadeira fé”. Ali, depois de ter as roupas rasgadas, sua pela foi arrancada com cacos de cerâmica. A turba então arrastou seu cadáver para fora dos muros da cidade e o queimou. Seu líder “herói”, Cirilo, acabou canonizado pela Igreja Católica Apostólica Romana…
O assassinato de Hipátia significou mais do que o fim de uma pessoa notável. Ele efetivamente marcou o declínio da vida intelectual alexandrina. Foi o sinal da morte de toda a tradição intelectual pagã da Antiguidade. Nos anos seguintes, a biblioteca de Alexandria com toda sua cultura clássica, praticamente, deixou de ser mencionada.
No fim do século IV, os romanos tinham praticamente abandonado a leitura como atividade séria. Não foram responsáveis só os ataques dos bárbaros ou o fanatismo dos cristãos. Com a perda das âncoras culturais, o Império Romano lentamente desmoronava em uma decadência que levava a uma trivialidade vulgar. No lugar do filósofo, chamava-se o cantor, antecessor da “celebridade” de hoje…
Quando, depois de uma longa e lenta agonia, o Império Romano ocidental finalmente ruiu – o último imperador, Rômulo Augústulo, renunciou sem alarde em 476 (exatamente 1.300 anos antes do nascimento do futuro Império Norte-americano) –, as tribos germânicas que tomaram uma província depois da outra não tinham nenhuma tradição letrada. Como os conquistadores eram em sua grande maioria cristãos, aqueles dentre eles que haviam aprendido a ler e a escrever não tinham nenhum incentivo para estudar as obras de autores pagãos clássicos como os filósofos gregos.
A barbárie predominou devido à intolerância religiosa.
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