Está cansado, teve um dia daqueles, deita a cabeça no travesseiro para esquecer tudo e dormir. Mas não é o que acontece. Por alguma razão, você não consegue parar de pensar. A sua mente vai acelerando e percorre inúmeros temas, muitos deles envolvendo alguma preocupação: a pandemia, a economia, a sua família, algo do trabalho, mil outras coisas… ou simplesmente a angústia de não conseguir pegar no sono. Você frita na cama por um tempo interminável, que parece alguma preocupação: a pandemia, a economia, a sua família, algo do trabalho, mil outras coisas… ou simplesmente a angústia de não conseguir pegar no sono. Você frita na cama por um tempo interminável, que parece atravessar eras geológicas, enquanto tenta se forçar a dormir. Desiste, abre os olhos, checa o horário no celular – e se assusta ao constatar que daqui a pouco já vai amanhecer.
Todo mundo já teve uma noite de insônia. Acontece. O problema é quando ela se torna crônica – o que tem ocorrido com cada vez mais pessoas. Um estudo realizado pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) com 1.101 mulheres (1) revelou que 32% delas tinham insônia persistente, diagnosticada clinicamente. E essa pesquisa é de 2013: uma época que, comparada a todos os tumultos da vida nos últimos anos, parece um poço de tranquilidade. De lá para cá, o número de insones disparou. “Acredita-se que 60% a 70% da população brasileira tenha alguma queixa em relação ao sono”, afirma a biomédica Monica Andersen, diretora do Instituto do Sono.
E isso tem se refletido no uso de remédios. Entre 2011 e 2018, as vendas de zolpidem, uma das drogas mais usadas para tratar a insônia, cresceram 560% no Brasil (hoje estão em torno de 15 milhões de caixas por ano). Em 2019, o país consumiu 56,6 milhões de caixas de calmantes e soníferos, segundo dados da Anvisa. E a pandemia agravou o fenômeno: em março e abril de 2020, as vendas de clonazepam (Rivotril) cresceram 22% sobre o mesmo período do ano anterior.
O problema é que esses medicamentos têm riscos consideráveis. O uso contínuo de benzodiazepínicos, como o clonazepam, pode causar dependência – e obrigar a pessoa a utilizar doses cada vez mais altas para obter o mesmo efeito. Se tomados em grande quantidade, e misturados com álcool, eles podem matar por parada respiratória (mesmo risco dos barbitúricos, um tipo mais antigo de sonífero). Já as chamadas “drogas z”, como o zolpidem, não apresentam esse risco, mas também viciam. E têm efeitos colaterais insólitos: podem provocar alucinações e desencadear parassonias, um tipo extremo de sonambulismoAté hoje a indústria farmacêutica não conseguiu criar um remédio para dormir que seja realmente seguro e eficaz. Ela continua tentando: sua criação mais recente é o lemborexant, aprovado pela FDA em dezembro de 2019. Ele também é considerado viciante – tanto que sua comercialização, assim como a dos barbitúricos, benzodiazepínicos e das drogas z, é fiscalizada pela Drug Enforcement Agency (a mesma agência que combate o narcotráfico nos Estados Unidos).
Mas por que é assim? Por que, até hoje, os remédios para dormir podem perder o efeito, causar dependência, gerar efeitos colaterais bizarros ou coisa pior? Existe uma resposta – e ela não é muito animadora.
A virada do século 20 trouxe uma nova promessa: os brometos de lítio e potássio. Seu grande promotor foi o médico britânico Neil MacLeod, que em 1897 anunciou o que chamava de “cura do sono” com esses sais. Mas os pacientes acabavam tendo náuseas, irritabilidade e alucinações. Em parte, isso acontecia porque o tempo de ação da substância (a chamada “meia-vida”) era longo: ela ficava até 12 dias circulando no corpo, e se acumulava até alcançar níveis tóxicos. Foi quando uma revolução na ciência trouxe uma droga ainda mais promissora – e problemática.
Em 1864, num momento de rara inspiração, o químico alemão Adolf von Baeyer misturou a ureia (substância contida na urina) com um composto químico chamado malonato de dietila. Assim, inventou o ácido barbitúrico – a origem do nome é incerta, mas provavelmente vem da junção das palavras “bárbara” e “ureia”. Em si, o ácido barbitúrico não produzia efeitos no cérebro; mas os derivados dele, que foram sendo desenvolvidos por outros cientistas, sim.
SONHANDO ACORDADA
Numa noite de setembro de 2007, a australiana Mairead Costigan, de 27 anos, tomou um comprimido de zolpidem e foi dormir. Pegou no sono. Pouco depois, levantou-se da cama e saiu de casa de pijama. Fazia 10 graus lá fora, mas ela caminhou descalça por 15 minutos até a Ponte da Baía de Sydney. Câmeras de segurança que registraram o episódio indicaram que Mairead tinha uma expressão facial vazia, sem nenhum traço de emoção – típica de quem está passando por um episódio de sonambulismo. Mairead, que estava concluindo o doutorado em filosofia e recebera ofertas de emprego das universidades de Oxford e Cambridge, escalou uma mureta e despencou 20 metros até a morte. Ela vinha tomando zolpidem, sob orientação médica, havia nove meses – sendo que a bula recomenda “não exceder quatro semanas de tratamento”.
O sonífero também já foi associado a acidentes em que o motorista não se lembra de ter pegado o carro. E até crimes cujo autor não se lembra de ter cometido. Um artigo publicado em 2013 por três médicos dos EUA relata dois casos do tipo (6). Num deles, uma americana de 62 anos, identificada apenas como “Sra. B.”, matou o marido, atingindo-o no crânio várias vezes com um cano de metal e depois colocando um saco plástico ao redor da cabeça dele. A mulher, que não tinha histórico de agressividade, havia tomado pelo menos quatro comprimidos de zolpidem (não se lembrava ao certo) porque não conseguia dormir. Cinco dias antes, tinha começado a usar também o antidepressivo paroxetina, receitado por um médico.
A Sra. B. ficou em casa cerca de 24 horas após o homicídio. Amigos que falaram com ela pelo telefone a notaram estranha. “Eles ligaram para o 911 ao encontrá-la na banheira segurando uma faca na garganta”, escreveu a psicóloga Cheryl Paradis, da Marymount Manhattan College, em Nova York.
É possível que a Sra. B fosse uma psicopata enrustida, e tenha usado o medicamento como desculpa. Mas a história dela não foi a única. Em 2019, a FDA exigiu alterações na bula do zolpidem, do eszopiclone e do zaleplon, para deixar claro que podem causar “comportamentos complexos de sono”, resultar em “ferimentos graves e mortes”, “após a primeira dose ou após um longo período de tratamento, em pacientes sem nenhum histórico desses comportamentos e mesmo nas doses mais baixas” .
O mecanismo pelo qual as drogas z podem desencadear episódios como esses, chamados de parassonias, não é bem compreendido. A pessoa pode andar, falar, comer, dirigir, enviar mensagens ou até fazer sexo num estado entre o sono e a vigília, sem se lembrar de nada disso depois. Esse efeito colateral é raro e, segundo a neurologista Andrea Bacelar, geralmente só acomete quem tem depressão ou transtorno bipolar. “Estamos falando de uma medicação que é segura, sim. Mas que também exige cuidados e uma prescrição bem detalhada”, diz.
Segundo ela, o médico deve manter um olhar atento sobre o paciente, que, por sua vez, nunca deve tomar o remédio antes da hora de dormir – como, por exemplo, às 17h ou 18h.
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