No meio do caos desse mundo é difícil acreditar que existe Deus. Assistimos a guerra, fome, miséria e a violência todos os dias, e sabemos que isso assusta, não é mesmo? Por isso só nos resta falar de esperança, afinal ela é a última que morre.
Na bíblia existem diversas passagens que abordam a questão da prosperidade dos maus e do sofrimento dos justos. Aliás, nela há até um livro em que seu personagem principal é descrito como alguém “íntegro e reto, temente a Deus e que se desviava do mal” (Jó 1:1), mas que ainda assim sofreu muito, um exemplo nada animador, mas se lendo o livro todo vemos que seria esse sofrimento uma tentação do “diabo” para que Jó perdesse a fé e blasfemasse.
Na filosofia esse tema também despertou interesses. O polímata (indivíduo que conhece ou estuda muitas ciências) e filósofo alemão, G. W. Leibniz, a partir de 1710, escreveu seus “Ensaios sobre Teodiceia, sobre a Bondade de Deus, a Liberdade do Homem e a Origem do Mal”, e sob a ótica racionalista do pensamento filosófico tentou desvendar alguns dos mistérios do Criador.
Mais um grande pensador a se debruçar sobre o tema foi C. S. Lewis. Na obra “O problema do sofrimento” (1940) ele aborda temas como a onipotência divina, a bondade divina, a maldade humana, a queda do homem, o sofrimento humano, tudo com a intenção de trazer um pouco de alento para essa tão antiga questão.
Um livro mais atual e de grande repercussão sobre o assunto é “Quando Coisas Ruins Acontecem às Pessoas Boas” (1981), do Rabino Harold Kushner, que parte da premissa (que, data vênia, reputo falsa) de que Deus não é onipotente. Ele tenta nos dar conforto com o fato de que o Criador nos dá força para enfrentar qualquer situação. Na obra “Se Deus é bom, porque o mundo é tão ruim?”. O autor parte da ideia de que não podemos simplificar o assunto, reduzindo-o a apenas uma ou outra resposta. Mas devemos analisar o sofrimento sob diversos prismas, para, quem sabe, chegarmos a compreensão do porquê aquilo está acontecendo.
O rabino começa a jornada em busca de respostas para questionamentos tão profundos explicando que diante do sofrimento devemos ter basicamente duas posturas.
Se é outra pessoa quem está sofrendo, não devemos julgar ou tampouco apontar erros, mas agir com compaixão e dar-lhe o benefício da dúvida, porque talvez aquela dor não tenha haver com qualquer transgressão que tenha praticado, mas seja por outra razões que só o Criador conhece.
Por outro lado, se somos nós mesmos quem sofremos, devemos agir com introspecção e avaliar sincera e intimamente nossas atitudes, estilo de vida, forma de pensar, de crer, enfim, tudo em nós precisa passar por uma auto-reflexão a fim de procurar porque estamos passando por aquilo.
As ações, nós escolhemos; as consequências, são automáticas
Ao criar o homem, Deus teria estabelecido que ele teria livre-arbítrio e para que esse atributo fosse respeitado resolveu não interferir em nossas escolhas e ações. A partir de então, é como se Ele “pairasse” sobre os homens, procurando apenas influenciá-los para que hajam em conformidade com Seus mandamentos. Contudo, a decisão é sempre do homem.
Só Ele conhece o todo e a verdade sobre cada um de nós
Quando vemos coisas ruins acontecendo a pessoas que acreditamos ser “boas”, ou também o inverso, isto é, coisas “boas” em favor de pessoas “ruins”, devemos nos precaver em julgar aquilo que aparentemente está acontecendo.
Apenas e tão somente Deus sabe quem é realmente bom e quem é verdadeiramente mal. Nós julgamos segundo as aparências, enquanto Ele (só Ele) conhece as verdadeiras intenções dos corações. Às vezes temos certeza de que determinada pessoa é boa e é temente a Deus, entretanto, ninguém pode estar completamente seguro acerca daquilo que ela faz quando está sozinha, quando não está sendo observada, ou mesmo que tipo de pensamentos e também de sentimentos alimenta em seu interior.
Por outro lado, também devemos considerar que um determinado acontecimento que parece ser ruim, as vezes não é. Nossa visão é demasiadamente limitada e só Ele, que conhece o todo, tanto o pretérito como o porvir, tem condições de fazer essa avaliação.
Frequentemente, alguns fatos que inicialmente parecem ser muito ruins, ao longo dos anos demonstram que não poderia ter ocorrido algo melhor. Além do mais, também existem acontecimentos que só na Eternidade compreenderemos.
Na maioria das filisofias acredita – se que este mundo é apenas uma temporada para decidir como será a morada eterna.
No Judaísmo por exemplo, Antes de virmos ao este mundo, somos todos espíritos juntos ao Pai. Porém, mesmo estando num lugar pleno, ansiamos por descer a este mundo a fim de praticar boas obras (afastando-nos do mal e fazendo o bem, segundo os parâmetros dos Mandamentos Divinos), para consequentemente acumular mérito (galardão) e, assim, efetivamente merecer um local e uma posição no Reino Celestial. O problema é que quando chega neste plano terreno a maioria simplesmente desperdiça a grande oportunidade da existência terrena e passa a dedicar muito tempo a coisas que não possuirão valor real quando tiver as obras (atitudes) julgadas.
A morte como decreto divino
Algumas vezes, a morte ocorre simplesmente porque a pessoa já cumpriu aquilo que veio fazer. Até pode ser que ela tinha um propósito que em nada se relacionava com sua própria vinda, pois tinha como função influenciar outras pessoas, os familiares, uma comunidade etc.
Também pode ser que Deus tenha recolhido a pessoa por misericórdia dela mesma, uma vez que, antevendo o futuro, sabe que no exercício de seu livre arbítrio o caminho que ela está trilhando a levará lugares muito ruins. Relata-se, inclusive, que Enoque foi levado justamente por isso, porque sua geração estava tão corrupta que até ele acabaria pecando.
Outras vezes, uma inocente vida é prematuramente ceifada não por um decreto de Deus, mas pela maldade ou até mesmo simples imprudência do próprio homem, o que não significa, entretanto, que deixará de haver justiça.
Enfim, a morte ainda pode ser o alívio para um sofrimento.
Envelhecimento, dor e doença
Segundo o modo de pensar habitual do ocidente, a velhice, a dor e a doença são maldições e não deveriam existir. Entretanto, a partir das concepções judaicas, o rabino Benjamin Blech apresenta uma visão bastante diferente e ensina que essas três condições da vida humana são “presentes” de Deus em resposta a orações feitas pelos três patriarcas: Abraão, Isaac e Jacó.
Para melhor compreender o que será explicado, importante saber que os sábios do Talmud ensinam um princípio segundo o qual a primeira aparição de algo na bíblia é de suma importância. Significa que antes de ser relatado na bíblia aquilo não acontecia anteriormente. Por isso, analisar as circunstâncias da primeira vez que algo é descrito, é de grande importância.
Segundo contam esses sábios, Abraão pediu a Deus que Ele distinguisse os homens maduros dos jovens, para que as pessoas soubessem a quem deveriam render mais honras (lembremos: na cultura oriental pensam bem diferente de na ocidental). Abraão não pediu as doenças e as limitações da velhice, mas apenas os sinais exteriores que demonstrassem que a pessoa está amadurecendo. Então, Ele percebeu que era algo bom e concedeu, a começar por Abraão.
Até Isaac, todo sofrimento descrito na bíblia acontecia como alguma punição, sendo apenas a partir dele que isso mudou. Contam os sábios que Isaac pediu a Deus que houvesse sofrimento porque como todos somos imperfeitos, teríamos muitas “contas para acertar” no Mundo Vindouro, então, se pudéssemos ir adiantando os pagamentos aqui neste mundo, isso reduziria o tormento ao qual seremos submetidos na Eternidade. Diante disso, Isaac foi o primeiro que passou por isso, ao ficar cego.
Jacó questionou com Deus o fato de que as pessoas morriam de modo súbito, sem tempo de despedirem-se de suas famílias, de pedirem perdão, de consertarem algumas coisas que pudessem estar pendentes. Deus concordou com o pedido e Jacó foi o primeiro a sofrer com uma doença que logo o levaria à morte.
Assim, tanto a velhice como a doença terminal servem para que tenhamos a consciência de que nosso tempo nesta jornada terrena está acabando e para que nos preparemos para o encontro com o Eterno, que avaliará cada uma de nossas atitudes, pensamentos, palavras e motivações.
A meu ver, essas explicações acerca da velhice e da doença que anuncia a morte são razoáveis. Entretanto, talvez nossa maior dificuldade seja compreender a função do sofrimento humano, especialmente quando nos parece imotivado e injusto.
Porque o sofrimento?
Não foi à toa que o imperador romano, Júlio Cesar, certa vez disse que “é mais fácil encontrar homens que irão se voluntariar para morrer, do que encontrar aqueles dispostos a suportar a dor com paciência”.
Até mesmo no âmbito dos processos judiciais a distinção do sofrimento e da morte se percebem. Muitos juízes atribuem maior indenização para as vítimas de lesões permanentes do que para os herdeiros que perdem um ente querido, exatamente com a ideia de que a dor permanente é pior que a morte. Nietzsche afirmava que “o que realmente eleva a indignação de uma pessoa em relação ao sofrimento não é o sofrimento em si, mas sua falta de sentido”. Conhecendo a razão ou o propósito, podemos suportar quase qualquer dor.
Diante do sofrimento aparentemente sem causa, muitos questionamentos surgem, especialmente com relação a presença de Deus durante todo o tempo de dor, sua onipotência, sua bondade, sua justiça. Enfim, num mundo governado por um Deus bom, justo e todo-poderoso não faz sentido uma pessoa inocente sofrer.
O sofrimento pode ter sido enviado por Deus não como uma punição, mas apenas e tão somente como uma lição que Ele entende necessário que passemos em nossa existência terrena. Nunca sabemos os infinitos desdobramentos que cada situação pode causar, por isso jamais devemos julga-lo ou acusá-lo de injusto.
Então, precisaríamos confiar que em algum momento todas as equações farão sentido e que compreenderemos como Ele cuidou de cada detalhe, em que pese isso ser muito difícil de entender quando estamos atravessando a fase de angústia, especialmente diante de alguns sofrimentos que quase não conseguimos suporta como, por exemplo, um filho pequeno com uma doença grave e incurável.Apesar de Deus ser onisciente, Ele não cria a realidade, apenas a prevê. A realidade é criada a partir das atitudes decorrentes de nossas escolhas, segundo nosso livre-arbítrio.
Por isso, mesmo o Eterno sabendo que somos capazes de suportar determinada situação e sermos aprovados (isto é, sem murmurar etc.), é necessário que isso se torne realidade. Ou seja, precisamos de fato enfrentar aquilo, pois somente após vencermos ou perdermos é que teremos isso creditado ou debitado em nossa “conta”.
Deus tinha grandes coisas para fazer com Abraão. Ele sabia se tratar de um homem de fé. Mesmo assim Abraão precisou passar por vários testes, para que aquilo que já se sabia de antemão, pois já estava “escrito”, efetivamente se tornasse realidade. Além do mais, tudo contribuiu para forjar seu caráter.
“Quando a pessoa não consegue ler os sinais que Deus nos deixa ao longo de nossa jornada, para que nos voltemos a Ele e aos seus Mandamentos, pode acontecer de ser absolutamente necessário uma dose de sofrimento para que haja despertamento e mudança de rumo de vida. Nesses casos, diz-se que a pessoa buscou a Deus “pela dor”. Nas palavras do rabino Benjamin Blech:
“Então o sofrimento – de acordo com esta ideia, que é somente uma de várias abordagens que devemos ter em mente – cumpre esse papel. Ele serve como uma vivência educativa enviada por Deus para trazer a pessoa de volta para uma realidade com a qual ela perdeu contato quando as coisas iam bem demais.”
Ainda pode ser que determinada situação de dor esteja ocorrendo para haver pagamento por um pecado cometido, isto é, uma expiação. É fato que todos somos pecadores e que nenhum homem consegue viver em absoluta santidade. Por isso, sempre há transgressões a serem acertadas e vale recordar que pecado não prescreve. Inclusive, quando ocorre algo ruim, alguns judeus têm o hábito de pronunciar a expressão ídiche: Que isso seja por expiação! (“Oy, zol zein a capure!”). É quase uma forma de agradecimento porque poderia ter ocorrido algo pior. Sem dúvida, é uma demonstração de rendição à soberania absoluta do Eterno.
É somente o Criador, em seu absoluto poder, quem sabe se algo precisa ser resolvido logo ou se convém esperar para o Mundo Vindouro.
Aqui vale um parênteses: da mesma forma que ninguém é completamente santo, tampouco existe alguém totalmente mal. Até nas mais desprezíveis pessoas, há algum traço de bondade, seja quando está num ambiente diferente, com outras pessoas, ou mesmo quando está absorto em seus pensamentos.
Por outro lado, como ninguém é absolutamente bom, as pessoas boas padecem temporariamente aqui neste mundo por causa de suas transgressões, ainda que poucas, porém lhes estão reservadas infindáveis recompensas no Mundo Eterno.
Óbvio que não são más todas as pessoas que desfrutam de bençãos neste mundo, pois esse princípio de intercâmbio comporta exceções.
O filósofo judeu Maimônides faz uma interessante abordagem sobre isso. Ele usa como base a passagem de Deuteronômio 11:13-14 e explica que as pessoas boas que são prósperas não estão recebendo “recompensa” propriamente dita, mas apenas “sustento”, “provisão”, “semente”, porque Deus percebe nelas um “parceiro” confiável para Seus propósitos. A “recompensa” pelas boas obras continua guardada para a Eternidade.
☻ Nota
Explanações desse artigo baseadas na obra do Rabino Benjamim Blech são ilustrativas e não necessariamente são a opinião do autor do Mega Arquivo
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