Imunoterapia Contra o Câncer


imunoterapia
O ano é 1891. O cirurgião William Coley acaba de perder sua primeira paciente. A adolescente de 17 anos tinha aparecido no Hospital do Câncer de Nova York com um tumor nos ossos da mão (um sarcoma). Coley não teve opção a não ser amputar o membro. Como não havia sinais aparentes de metástase – filiais do tumor em outros órgãos –, o médico supôs que a moça estava livre da doença. Dois meses depois, porém, ela morreu repentinamente: as células mutantes haviam se espalhado pelo corpo. Só estavam escondidas.
Arrasado, Coley vasculhou os prontuários do hospital atrás de casos semelhantes. Encontrou um relato escrito sete anos antes: uma imigrante italiana identificada como Zola, de 35 anos, tentou duas vezes extrair um sarcoma do tamanho de um ovo localizado embaixo da orelha esquerda. A protuberância sempre crescia de novo. Para piorar, durante a cicatrização da última das cirurgias de remoção, a pele da bochecha contraiu uma infecção chamada erisipela. Zola teve picos de febre violentos, e ficou à beira da morte.
Os médicos perceberam, porém, que a cada ataque de febre alta o sarcoma diminuía – até sumir completamente. O aumento na temperatura é um sinal de que nossas células de defesa estão em ação contra as ameaças que invadem o corpo. Ou seja: ao combater a erisipela na pele, o sistema imunológico também combateu o câncer por acidente. Impressionado, o médico percorreu os cortiços do leste de Manhattan em busca da italiana. Encontrou Zola viva e saudável, sete anos depois, em remissão completa.
Coley então transformou essa anomalia em tratamento. Injetou um coquetel de bactérias nos tumores de seus dez próximos pacientes para deixá-los doentes de propósito. Era um método bruto, e nada ético. Muitos acabavam mortos pela infecção antes de serem mortos pelo câncer. Mas às vezes dava certo: um homem com sarcoma inoperável, já espalhado pelos tecidos da pélvis e da bexiga, se recuperou plenamente – só morreria 26 anos depois, de ataque cardíaco. Seus glóbulos brancos, sozinhos, deram conta do recado. Após essa primeira leva, Coley se aperfeiçoou: percebeu que usar pedaços de bactérias mortas poderia surtir o mesmo efeito sem oferecer perigo.
Os relatos de Coley foram debatidos entre os médicos na época, mas a notícia não chegou ao público leigo, pois o câncer, no século 19, não era envolto pelo tabu que o cerca hoje. Foi só depois que os tumores se tornaram o inimigo público nº 1: entre 1900 e 1940, uma revolução no saneamento básico, nas vacinas e na nutrição diminuiu muito o número de pessoas que morriam graças a doenças como diarreia, tuberculose e varíola. A população pobre passou a alcançar idades mais avançadas – e o câncer começou a matar pessoas que antes morreriam de outras causas.
Na primeira metade do século 20, o câncer saltou da oitava para a segunda posição do ranking de causas de morte mais comuns – onde permanece, atrás apenas de doenças cardiovasculares. Quatro em cada dez pessoas terão um tumor em algum ponto da vida. Em 2018, o câncer matou 9,6 milhões de pessoas, 70% delas em países de renda baixa ou média. 22% dessas mortes estão associadas ao tabagismo; outros 22%, a hepatite ou infecção pelo papilomavírus humano (HPV). Os casos de câncer devem aumentar 70% até 2038, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), e apenas um quarto dos países pobres oferece tratamento na rede pública.
A palavra “câncer” é genérica; define uma coleção de aproximadamente 160 tipos de tumores. O que eles têm em comum é o fato de se construírem a partir da multiplicação descontrolada de alguma célula. O gatilho são mutações em um ou mais genes dessa célula. Essas mutações podem ser herdadas dos pais ou desencadeadas por agentes externos: cigarro, álcool, infecção por determinados vírus etc.
Por um século, combatemos o câncer por meio da quimioterapia e da radioterapia. Envenenar e torrar o tumor é uma estratégia eficaz em muitos casos, mas vem acompanhada de efeitos colaterais que acabam com o bem-estar dos pacientes.
Na busca por alternativas mais amenas, a ideia de Coley foi redescoberta pelos médicos a partir da década de 1980 e ganhou um nome cabeludo: imunoterapia, uma classe de tratamentos que ensinam o sistema imunológico a combater o câncer de forma eficaz. As imunoterapias são promissoras e têm pouquíssimos efeitos colaterais, mas ainda são limitadas: só se conhecem métodos eficazes contra alguns tipos de câncer, como melanoma (câncer de pele), linfoma e de pulmão.
Muitas drogas imunoterápicas ainda estão em estágio experimental, e as que chegaram ao mercado não são baratas. Uma ampola de Yervoy, um imunoterápico aprovado no Brasil pela Anvisa em 2012 e usado para conter metástase de câncer de pele, custa até R$ 18 mil, e são necessárias no mínimo quatro doses.
Os resultados, porém, impressionam tanto quanto o preço. Mas, antes de entender como os cientistas manipulam o sistema imune a nosso favor, é preciso aprender como ele funciona.
Você pode imaginar a imunoterapia como um jogo de Pac-Man: suas células de defesa só conseguem atacar o câncer após terem comido a bolinha.
Você pode imaginar a imunoterapia como um jogo de Pac-Man: suas células de defesa só conseguem atacar o câncer após terem comido a bolinha. (Design: Juliana Krauss / Ilustração: Otávio Brito/Superinteressante)

O sistema imune
Ele é dividido em dois grupos de células: as inatas e as adaptativas. As inatas são as primeiras a entrar em ação quando surge uma ameaça – os soldados rasos, que seguram a bronca enquanto o corpo monta uma estratégia. As adaptativas formam a tropa de elite.
Mas vamos começar com as inatas. As mais conhecidas são os macrófagos. “Macrófago” significa, ao pé da letra, “comilão”. É a junção das palavras gregas makrós (“grande”) e phagein (“comer”). Eles são como o Pac-Man – bolinhas flexíveis de 0,02 mm capazes de englobar e digerir qualquer coisa: micróbios, células mortas do próprio corpo, células potencialmente cancerígenas e até substâncias inorgânicas. O pigmento de uma tatuagem passa o dia sendo engolido e regurgitado por macrófagos.
O segredo dessa versatilidade está em certas proteínas que eles carregam, chamadas receptores do tipo Toll. Essas proteínas são como buracos de fechadura. Se rola um encaixe, os macrófagos são ativados. A chave correta, nesse caso, são pedacinhos de molécula que muitos vírus, bactérias e outras ameaças exibem, mas que não existem normalmente em nós. Por exemplo: os vírus têm RNA de fita dupla, humanos não têm. Bactérias têm uma proteína chamada flagelina, humanos não têm.
É um sistema esperto, mas simples. Como um antivírus gratuito que protege o PC de algo que você pode pegar baixando um filme pirata, mas não daria conta de um hacker do governo russo. E algumas bactérias são hackers mesmo: a da pneumonia, por exemplo, é protegida por uma cápsula que impede a deglutição pelo macrófago; já a da tuberculose se deixa deglutir de propósito, e então arma acampamento no interior dele.
Há outras células além dos macrófagos no sistema inato [veja infográfico abaixo]. As mais famosas aí são as células dendríticas. Como os macrófagos, elas são capazes de fagocitar as ameaças. Mas com um bônus: guardam pedacinhos dessas ameaças para apresentá-los a seus superiores. Os superiores, no caso, são células chamadas linfócitos.
O sistema imune tem um exército de células que defende o corpo de ameaças internas e externas. Elas se dividem em inatas (que são a primeira linha de defesa) e adaptativas (a tropa de elite). Aqui, algumas das principais inatas.

1. Macrófago
É o “Pac-Man” comum, que engloba e digere ameaças. Age sozinho ou guiado por anticorpos, que o ajudam a farejar os micróbios. Usa receptores universais do tipo Toll, que detectam os micróbios mais comuns. É o primeiro a atacar.

2. Natural killer (NT)
A “assassina natural”. Envenena células cancerosas ou sequestradas por vírus antes que causem problemas. É uma das primeiras a atacar, junto do macrófago.

3. Célula dendrítica
A célula dendrítica, como o macrófago, fagocita as ameaças. Mas com um bônus: pega pedacinhos delas e mostra para a tropa de elite, os linfócitos. Só elas têm essa autorização.
Os linfócitos são as células do outro sistema imune, o adaptativo. Ao contrário dos macrófagos e afins, que usam os receptores versáteis do tipo Toll, cada linfócito tem apenas um receptor, capaz de detectar um único antígeno. Você tem milhões de linfócitos aí dentro. E não existem dois iguais.
O objetivo dessa aleatoriedade é o seguinte: se cada um deles tem um buraco de fechadura especializado em uma chave diferente, são grandes as chances de que, independentemente de qual ameaça adentre o seu organismo, haja um linfócito ideal para tentar combatê-la, por mais extraterrestre que ela seja.
Os linfócitos T CD4, chamados auxiliares, são os mais importantes. Quando uma célula dendrítica engole uma ameaça – seja ela um vírus, bactéria ou câncer –, ela vai até os linfócitos e apresenta um pedacinho da ameaça a eles, um por um, até encontrar um linfócito com o encaixe ideal para iniciar o combate. Quando esse linfócito magia é encontrado, ele começa a se multiplicar e forma um exército de clones. Além disso, ele corre para ativar dois de seus funcionários, os linfócitos B e T CD8.
Os T CD8 são especialistas em venenos. Eles procuram células cancerígenas ou células que foram sequestradas por vírus e as destroem utilizando substâncias chamadas perforinas e granzimas. Os linfócitos B, por sua vez, atacam usando os famosos anticorpos. Os anticorpos são proteínas especializadas em grudar em algum pedacinho do invasor. São liberados no campo de batalha em grandes quantidades, para grudar em tudo que aparecer.
Eles podem, por exemplo, se conectar às proteínas da superfície de um vírus. É o equivalente a algemá-lo: de “mãos” atadas, ele se torna incapaz de penetrar na membrana de uma célula e sequestrá-la. Anticorpos auxiliam a resposta imune dessa e de outras formas, ainda que não sejam diretamente responsáveis por eliminar ameaças.
Agora, as adaptativas:

4. Linfócito T CD4
É o líder da resposta. Quando avisado pela dendrítica que há um problema, corre para ativar os demais linfócitos com um recadinho bioquímico.

5. Linfócito T CD8
Um assassino discreto. Após ser ativado pelo CD4, libera toxinas que desativam células problemáticas detectadas por seus receptores. Como se fosse uma natural killer ainda mais letal.

6. Linfócito B
Produz anticorpos – proteínas que grudam nas ameaças, ajudando a identificá-las. Alguns Bs são guardados para imunizar contra-ataques futuros da mesma bactéria ou vírus.
Agora que você conhece as células, entenda como elas funcionam. O sistema imune inato reage primeiro. Ele leva as ameaças para avaliação por células de hierarquia mais alta.
1.
Qualquer invasor – seja bactéria, vírus ou câncer – produz moléculas diferentes das que já existem no nosso corpo. Essas moléculas, chamadas antígenos, são gatilhos para ativar o sistema imune.
2.
Os macrófagos têm receptores tipo Toll que se encaixam nas substâncias anômalas mais típicas. Assim que um micróbio normalzinho entra no organismo, ele acusa a própria presença, é detectado e engolido.

3.
A célula dendrítica leva pedacinhos das ameaças para os linfócitos verem. Os pedacinhos são exibidos em uma molécula chamada MHC II, que é como um formato de arquivo que só o linfócito sabe ler.

4.
Cada linfócito tem só um detector, especialista em uma única ameaça. Quando a dendrítica encontra o linfócito T CD4 perfeito para a ameaça que ela carrega, ele é ativado e começa a organizar uma reação.

5.
O linfócito T CD4 dá um recado químico ao T CD8 que o autoriza a matar células cancerígenas e infectadas por vírus. Os T CD8 já detectaram a ameaça e estão de prontidão, esperando a ordem.

6.
Os linfócitos B também são ativados com o estímulo de proteínas mensageiras chamadas citocinas. Eles passam por uma metamorfose e se tornam plasmócitos, células cuja única função é secretar anticorpos.

A imunoterapia
Aqui surge uma questão: o sistema imune é um aparato de detecção de coisas estranhas, e existem linfócitos para detectar qualquer coisa. Então, por que ele não detecta o câncer?
A resposta é que, em geral, ele detecta: “O sistema imune não é cego aos tumores”, diz José Barbuto, professor de imunologia do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP. “De fato, ele está pegando a maior parte deles neste exato momento. A questão é que alguns poucos escapam e conseguem crescer.” (No livro Corpo, Bill Bryson escreve: “Todos os dias, estima-se, de uma a cinco células suas se tornam cancerígenas, e seu sistema imune as captura e extermina.”)
O câncer também tem muito mais facilidade em passar despercebido que um agente externo. Um motivo é que ele cresce devagar. Primeiro, uma célula se multiplica e sofre uma mutação. Depois, se divide mais um pouco e sofre outra mutação. Não é o suficiente para alertar as células de defesa, que acabam se acostumando àquela anomalia por não considerá-la perigosa o suficiente.
Quando o tumor começa a incomodar, ele já ensinou ao corpo que não deve ser combatido. Acaba interpretado como uma doença crônica, que exige apenas uma leve vigilância. As imunoterapias são todas táticas para despertar as defesas dormentes.
A modalidade mais popular de imunoterapia surgiu na década de 1990, com o trabalho simultâneo de dois pesquisadores, um no Japão, outro nos EUA.
Em 1992, Tasuku Honjo, da Universidade de Kyoto, descobriu uma proteína chamada PD-1 na superfície dos linfócitos. A PD-1 é um botão que interrompe a ação da célula quando ela não é mais necessária. Essa é uma das rédeas que, normalmente, evitam que o linfócito perca a noção e comece a atacar órgãos e tecidos inocentes. Em casos de câncer, porém, o PD-1 acaba impedindo uma ação eficaz do glóbulo branco mesmo quando ele encontra um câncer.
Honjo bolou uma droga que pudesse grudar no botão PD-1 e escondê-lo, impedindo que fosse pressionado. Como a tampa que se coloca sobre um botão de alarme de incêndio. Assim, o linfócito ficaria livre para atacar o tumor até eliminá-lo. Essa droga era justamente o melhor tipo de molécula para grudar em alguma coisa: um anticorpo. Era uma inversão inédita. Em vez de usar um anticorpo para aderir ao tumor, Honjo criou um anticorpo capaz de causar um curto-circuito no sistema imune, ativando-o.
Dois anos depois, no Natal de 1994, James Allison, da Universidade da Califórnia em Berkeley, teve o mesmo insight. O grupo de biólogos do qual ele fazia parte estudava como um outro tipo de freio de linfócito, a proteína CTLA-4, poderia ser acionado de propósito em situações em que o sistema imune ataca o corpo que deveria defender (caso de uma doença chamada artrite reumatoide). Allison imaginou que, se bolasse um jeito de fazer o contrário – sabotar o freio que estudava em vez de incentivá-lo –, chegaria a uma droga contra o câncer. Deu certo praticamente de primeira.
Allison e Honjo ganharam o Nobel de Medicina em 2018, e os bloqueadores de PD-1 e CTLA-4 se tornaram algumas das drogas imunoterápicas mais populares do mundo. Como já dissemos aqui, são especialmente eficazes no tratamento de melanomas e, não menos importante, são melhores do que qualquer outra terapia na tarefa de eliminar metástases (lembre-se: as filiais do tumor que brotam em outros órgãos). Isso acontece porque os linfócitos, uma vez acionados, caçam os mutantes onde quer que eles se escondam.
O nome técnico desse tipo de imunoterápico é “inibidor de checkpoint”, já que ele bloqueia a “checagem” que o linfócito faria para saber se deve atacar ou não.
Entre os tratados com Ipilimumab – o bloqueador de CTLA-4 –, a taxa de pacientes de melanoma com metástase que sobrevivem mais de cinco anos após o diagnóstico é algo entre 18% e 20% (Os números variam dentro de uma margem de erro conforme o artigo científico consultado). Com Nivolumab – o bloqueador de PD-1 –, 29% a 39%. Com os dois combinados, de 50% a 60%. É um resultado surpreendente: até o lançamento dos inibidores de checkpoint, só 5% dos pacientes em estado grave (estágio 4) sobreviviam por esse tempo.
O linfócito costuma ser impedido de atacar o câncer tanto pelo próprio tumor quanto pelas células aliadas. Os remédios são tampas que escondem os freios dos linfócitos.
O próprio câncer pode ativar os linfócitos T CD8 (os especialistas em envenenar células que dão defeito). Mas ele disfarça e finge que é só uma parte normal do corpo. Isso é feito por meio de um freio molecular chamado PD-1 que deixa o linfócito pianinho.
O bloqueador de PD-1 cobre o freio que é acionado pelo câncer, fazendo o linfócito perceber que foi enganado.
Na ilustração acima, a célula dendrítica apresenta um pedacinho do câncer para o linfócito, que detecta a ameaça e ataca. Porém, como o câncer é feito de células do próprio corpo, a célula dendrítica se confunde e acha que está ordenando um ataque em um órgão inocente. Preocupada, ela puxa um freio chamado CTLA-4, que desliga o linfócito.
O bloqueador de CTLA-4 é uma tampa que cobre o freio, impedindo a célula dendrítica de acioná-lo. O linfócito acorda e começa a atacar o tumor.

O preço
Tirar um remédio do papel é demorado. O Opdivo só foi aprovado pela FDA – o órgão americano equivalente à Anvisa – em 2017. O Yervoy chegou ao mercado um pouco antes, em 2011. A demora não é à toa: as empresas do setor farmacêutico realizam uma grande quantidade de testes para garantir a eficácia e a segurança da droga. Em média, de cada 10 mil moléculas pesquisadas, só uma vira remédio.
Em média, de cada 10 mil moléculas pesquisadas, só uma vira remédio.
Em média, de cada 10 mil moléculas pesquisadas, só uma vira remédio.
Tanto o Opdivo quanto o Yervoy, hoje, são propriedade intelectual da Bristol-Myers Squibb (BMS). “Depois que começam os testes clínicos, com seres humanos, a universidade em geral não é capaz de financiá-los por conta própria e precisa se aliar a um patrocinador do setor privado”, explica Roger Miyake, diretor de Acesso na BMS no Brasil.
Foi o que aconteceu com Allison, que na época era pesquisador e docente da Universidade Texas A&M. Para realizar os teste clínicos do Yervoy, ele fez uma parceria com uma startup de biotecnologia chamada Medarex, que em 2009 foi adquirida pela BMS.
Essa jornada se reflete no preço. Nos EUA, de acordo com a BMS, o preço de uma ampola de Opdivo de 240 mg, que deve ser injetada a cada duas semanas, equivale a R$ 27 mil. Quem precisa da combinação Opdivo e Yervoy, cujo tratamento completo exige no mínimo quatro injeções, vai desembolsar algo entre R$ 90 mil e R$ 165 mil por ampola.
Tratar câncer, diga-se, nunca foi tão caro: em 1965, o preço médio de uma droga anticâncer recém-aprovada pela FDA era R$ 400 – em valores de hoje, corrigidos pela inflação. Em 1980, pouco mais de R$ 4 mil. Agora, praticamente não há limites (como veremos adiante).
No Brasil, um órgão da Anvisa chamado CMed regula o preço dos medicamentos, mas ele ainda é proibitivo. O Yervoy custa algo entre R$ 14,5 mil e R$ 18 mil a dose, conforme o ICMS de cada Estado. Sob esse valor, ele foi submetido à avaliação da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias (Conitec), que determina se o custo-benefício de uma droga justifica sua inclusão no SUS. Foi negado. O caso do Opdivo, por sua vez, encontra-se em consulta pública na internet. Qualquer cidadão pode opinar sobre a implantação da terapia no sistema público.
A advogada Carla Gil Fernandes, em tratamento há um ano e dois meses com o Opdivo, estava com melanoma metastático em estágio 4 quando começou. Teve remissão completa, confirmada por exames de imagem a cada três meses. É um exemplo da eficácia do remédio. Mas também da dificuldade de acessá-lo:
“O SUS não fornece e eu estava sem plano de saúde. Minha única opção era judicializar o pedido do remédio para o Estado, e assim o fiz”. Como o Estado é responsável por zelar pela saúde dos cidadãos, é possível conseguir por meio da abertura de um processo diversas drogas que o SUS não disponibiliza. Mas essa só é uma alternativa para quem tem dinheiro para pagar um advogado (ou, como no caso de Carla, para quem já é um).
As alternativas
Uma opção para o governo é pechinchar com as farmacêuticas argumentando que o volume justificaria um preço menor por dose. O Brasil é o quinto país mais populoso, 600 mil casos de câncer são registrados por ano. 150 milhões de pessoas dependem do SUS. Mesmo que o sistema público não dê tanto lucro quanto os convênios, o número de ampolas é tão alto que o desconto pode compensar.
Desenvolver medicamentos nacionais é outro caminho. É o que faz a ReceptaBio, uma startup fundada em 2006 por um ex-diretor científico da Fapesp, José Fernando Perez. Eles estão realizando testes clínicos de fase 2 para duas moléculas que têm a mesma função que o Yervoy e o Opdivo da BMS, mas que sairão por uma fração do preço.
Ambas já estão patenteadas, e espera-se que passem por aprovação acelerada pelas agências reguladoras (Anvisa e FDA), isto é: que possam chegar às prateleiras antes da conclusão dos ensaios clínicos de fase 3. “O fato de nós termos tanto o CTLA-4 quanto o PD-1 é muito importante”, diz Perez. “A combinação é mais eficaz que qualquer um dos dois sozinhos.” A aprovação deve vir até 2021.
A ReceptaBio faz parcerias com universidades e centros de pesquisa, que podem contar com bolsas de agências de fomento estaduais e federais. Assim, uma parcela do investimento é custeada com recursos públicos. Outra peculiaridade é que os testes estão sendo realizados não com melanomas, que são o alvo típico dos inibidores de checkpoint, mas em mulheres com câncer de colo de útero: um tumor comum em países em desenvolvimento, mas raro na Europa e nos EUA por causa da vacinação contra o vírus HPV. “Câncer de colo de útero não é uma indicação atraente para as multinacionais”, diz Sonia Dainesi, diretora médica da ReceptaBio.
Participar de testes como esses pode ser uma ótima forma de testar uma terapia inovadora gratuitamente. As universidades públicas e os principais centros de pesquisa em saúde brasileiros estão constantemente criando e aperfeiçoando drogas contra diferentes tipos de tumor, e precisam de voluntários para aplicá-las.
Além disso, nada impede as grandes empresas do setor farmacêutico de realizarem seus ensaios clínicos por aqui. O problema é a burocracia: o governo brasileiro impõe regulações severas ao processo de aprovação de uma terapia, o que atrasa as iniciativas nacionais e afugenta as internacionais. É muito mais barato e rápido realizar testes na Europa, ou na China, do que aqui.
“O governo precisa incentivar estudos clínicos, agilizar a aprovação deles. Principalmente em um cenário de privação de recursos, em que essa é uma alternativa”, diz Andreia Melo, chefe da divisão de pesquisa clínica e desenvolvimento tecnológico do Instituto Nacional do Câncer.
O futuro
Nas páginas anteriores, debatemos uma única modalidade de imunoterapia. Embora os inibidores de checkpoint como o Yervoy e o Opdivo estejam em evidência desde o anúncio do Nobel de 2018, eles são só a ponta do iceberg.
Uma aposta recente são os linfócitos T com receptores de antígeno quiméricos, mais conhecidos como células CAR-T. O resumo da ópera é: coletar linfócitos na corrente sanguínea do paciente, levá-los para o laboratório e instalar neles um gene. Esse gene equipa o linfócito com uma proteína capaz de aderir ao tumor. Assim, cria-se um linfócito customizado, para ser reinserido na pessoa doente.
O problema, claro, é o preço. Um tratamento de células CAR-T contra câncer no sangue chamado Kymriah e vendido pela Novartis sai por US$ 475 mil. Em bom português, R$ 2 milhões. Uma versão brasileira da técnica está em desenvolvimento na Faculdade de Medicina da USP em Ribeirão Preto e pode sair por R$ 150 mil. Ela foi aplicada pela primeira vez em outubro de 2019. Vinte dias depois, o primeiro paciente, um homem de 62 anos com linfoma, estava essencialmente livre da doença.
Há dezenas de imunoterapias sendo testadas para uma grande variedade de tumores. Cada uma usa uma estratégia diferente para despertar as defesas naturais do corpo.
Há dezenas de imunoterapias sendo testadas para uma grande variedade de tumores. Cada uma usa uma estratégia diferente para despertar as defesas naturais do corpo. Uma das imunoterapias mais sofisticadas que existem, curiosamente, é um retorno à ideia original de Coley: infectar o tumor de propósito. O Imlygic, fabricado pela empresa de biotecnologia Amgen, é um vírus da herpes criado e modificado em laboratório. Esse vírus hackeado não consegue invadir células saudáveis, mas é capaz de parasitar as cancerígenas.
Ao ser injetado no tumor, ele sequestra o maquinário das células para criar cópias de si mesmo (como todo vírus faz). Ao final, a célula explode, liberando bebês vírus na vizinhança. Isso é bom não só porque a célula em si foi morta, mas porque o recheio dela foi solto pelo corpo. Tal cenário aumenta a chance de o sistema imunológico detectar uma molécula anômala inédita, capaz de convencê-lo a iniciar uma resposta.
Em uma das imunoterapias mais inovadoras disponíveis atualmente, um vírus HPV hackeado se infiltra no câncer.
Fases:
1.
O tumor indicado para este tipo de tratamento é um melanoma em estágio 4 com metástases – praticamente intratável por métodos como quimioterapia.

2.
No tratamento, um vírus HPV modificado é injetado no tumor. Ele é capaz de atacar as células cancerígenas, mas não consegue invadir as normais.

3.
Quando o câncer explode, ele libera seu “recheio” na corrente sanguínea. Essas moléculas estranhas chamam a atenção do sistema imune, que corre para a cena do crime e passa a atacá-lo.
O vírus se reproduz parasitando o maquinário da célula cancerígena. Depois, ele a destrói, espalhando seus bebês por aí. De célula em célula, o tumor diminui de tamanho.
Enquanto isso, no Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP em São Paulo, capital, José Barbuto desenvolve há anos uma outra terapia, baseada em células dendríticas. Lembre-se: a função delas é ativar os linfócitos, exibindo um pedacinho da ameaça na molécula MHC II. Se elas estão desligadas, o contra–ataque não começa. E é comum o tumor convencer as dendríticas de que está tudo bem.
Para contornar o problema, Barbuto extrai dendríticas saudáveis do sangue de um doador, mistura com células do tumor do paciente e dá um choque de mil volts. O choque perturba a membrana das células e faz com que elas se fundam, criando quimeras microscópicas: células híbridas de dois núcleos que são metade o câncer de um paciente e metade a célula dendrítica de uma pessoa saudável. Essa bizarrice vive pouco, mas o suficiente para apresentar o tumor aos linfócitos, iniciando a reação na marra. É como fazer ligação direta em um carro.
Esse tipo de tratamento às vezes é chamado de vacina, ainda que não seja uma vacina na acepção corriqueira do termo (vacinas treinam o sistema imune para evitar que alguém contraia uma doença, já a vacina contra o câncer trata o paciente após o diagnóstico). Há vários tipos experimentais de vacina. É possível, por exemplo, produzir em laboratório pedacinhos de proteína que sejam bons sósias dos antígenos que o câncer fabrica. Assim, seu sistema imune faz uma “simulação” antes de partir para a batalha.
Um dia é possível que imunoterapias assim – bem como tantas outras saindo do papel em laboratórios do mundo todo – entrem para o catálogo de uma empresa farmacêutica. Mas essa sempre será uma longa novela. Por trás da história de cada paciente, há a história de cada comprimido. Eles nascem em universidades, passam por startups e testes clínicos… Se forem reprovados, o processo começa todo de novo.
Demorado? Sem dúvida. Mas depende da perspectiva. Há apenas 150 anos, sangrar os pacientes na navalha era tido como método sério para curar a maior parte das doenças. A medicina avança devagar em relação à duração de uma vida. Mas o conhecimento é cumulativo: nós temos hoje o que as vidas de ontem deixaram para nós. E as vidas de amanhã terão o que deixarmos para elas.

Quem corre mais, bípede ou quadrúpede?


cheetah-mother-scans-ser
O ser humano não trepa mais em árvores porque não precisa mais fazê-lo para sobreviver. No entanto, também não precisamos mais correr e continuamos correndo. Por quê? Conheça a teoria que diz que corremos porque ainda somos meio selvagens. De quebra, aprenda os truques dos melhores corredores do mundo animal
Quem costuma sair de casa bem cedo já deve ter notado a multidão de pessoas vestindo roupas esportivas, correndo pelas ruas para todos os lados. O hábito é tão disseminado que provavelmente você nem repare mais. Mas não deixa de ser estranho. Por que toda essa gente corre? De onde vem a satisfação de correr simplesmente por correr? E, afinal, por que a corrida é o esporte mais popular do mundo, com centenas de milhões de adeptos?
A resposta, segundo o corredor e biólogo americano Bernd Heinrich, está na natureza. Correr pode parecer supérfluo para a humanidade hoje, depois que domesticamos o cavalo e inventamos a bicicleta e o motor a explosão. Mas durante muito tempo a corrida foi fundamental para a sobrevivência humana, e essa habilidade continua inscrita em nosso código genético. “Somos todos corredores naturais, apesar de boa parte de nós ter se esquecido desse fato”, diz Heinrich, que é professor de biologia na Universidade de Vermont, nos Estados Unidos. Ele sabe do que fala. Em 1981, Heinrich venceu a ultramaratona de Chicago, nos Estados Unidos, em tempo recorde: completou os 100 quilômetros da prova em 6 horas e 38 minutos.
Curiosamente, ele atribui parte de seu sucesso às horas que passa no laboratório. Segundo ele, foi observando os animais que entendeu nosso prazer em correr e desenvolveu estratégias para melhorar sua performance como corredor. O resultado dessas observações está no livro Why We Run (“Por Que Corremos”, inédito no Brasil).
Segundo Heinrich, nossa obsessão por correr é inata. E isso seria fácil de observar. Afinal, não é preciso haver um prêmio para que crianças de qualquer idade se disponham a se alinhar e a disputar uma corrida. “É pelo prazer de correr”, diz ele. Essa disposição, segundo o professor, vem de nosso antepassado caçador. Ou seja, sempre que corremos, para ganhar uma corrida ou simplesmente para fazer exercício, estamos virtualmente de volta às savanas africanas onde nosso código genético foi forjado. “Toda corrida é como uma caçada. Terminar uma maratona, bater um recorde, fazer uma descoberta científica, criar uma grande obra de arte, todas essas tarefas são substitutas da necessidade de exibirmos as ferramentas psicológicas do predador de distância que somos”, afirma o corredor e professor.
Para entender essa herança ancestral, é preciso voltar 6 milhões de anos no tempo, até a época em que os primeiros hominídeos deixaram as árvores e começaram a vagar pelas planícies verdejantes do continente africano. Naqueles descampados, os animais viviam (e ainda vivem) em bandos, para caçar ou não serem caçados. E não foi diferente com os tataravós dos nossos tataravós. Nossos antepassados não eram supremos corredores e provavelmente compensavam essa falta de habilidade caçando em grupos. Carne havia em abundância nas planícies, mas somente para quem era capaz de alcançá-la, lutando e disputando espaço com leões, hienas, abutres e outros bandos.
E isso não bastava. Para vencer na vida, era preciso correr mais que os outros dentro do próprio bando. Entre chimpanzés e babuínos, ter acesso ao melhor pedaço de carne da presa recém-apanhada garante não só a boa alimentação e a sobrevivência. A posse da melhor carne significa mais amigos e um charme a mais para conquistar fêmeas. Significa ter filhos. Ou seja, entre nossos antepassados remotos, só os melhores corredores tinham acesso ao sexo, o que, convenhamos, é um estímulo e tanto para dar umas pernadas.

Pássaros e Antílopes
Seja para caçar búfalos ou para dar voltas e voltas no quarteirão, um dos maiores problemas para corredores de longas distâncias é como manter o corpo abastecido de combustível. No mundo animal, os bichos mais bem adaptados para vencer grandes distâncias são os pássaros migratórios, como o maçarico-das-rochas. Esses passarinhos cruzam, todo ano, milhares de quilômetros ao sabor das estações. Imagina-se que, para cumprir essa tarefa, os bichinhos tenham que estar no auge de sua forma, o que, para um ser humano, significaria estar bem magro. Engano. Seu “treinamento” para a jornada não poderia ser mais surpreendente: um regime de engorda. Os maçaricos-das-rochas, por exemplo, chegam a dobrar de peso nos dez dias que antecedem a partida – a maior parte do que ganham é gordura, que é queimada durante o vôo e usada como combustível.
Seria interessante, então, para maratonistas humanos engordarem? Com as regras atuais das corridas, claro que não. Se a prova fosse intercontinental, uma travessia de centenas de quilômetros, em que os competidores não pudessem comer nada, os atletas mais gordos teriam mais chances de vencer, com certeza. Os corredores magros disparariam na frente, mas não terminariam a prova. Uma Ferrari que não pudesse abastecer perderia uma corrida dessas para um caminhão que carregasse seu peso em combustível.
A diferença é que, nas corridas humanas tradicionais, os competidores podem comer quando e quanto quiserem durante uma prova. Ou seja, é melhor correr magro para carregar o menor peso possível. Assim, a maior parte dos corredores de elite tem no máximo 6% do peso do seu corpo constituído por gordura. Comer e beber durante o caminho tem suas desvantagens. Ultramaratonistas, que correm mais de 100 quilômetros, são obrigados a defecar e urinar durante a prova. E muitas vezes (eca!) fazem isso sem parar de correr.
A capacidade de carregar o combustível é o que diferencia um grande corredor de uma presa fácil. O antilocapra, um antílope que vive nas pradarias da América do Norte, foi considerado o melhor corredor de longa distância, em uma eleição feita pela revista britânica Nature, especializada em ciência. Esses animais atingem até 98 quilômetros por hora e podem manter essa velocidade por até meia hora, o que é impensável para humanos e outros animais.
Uma das chaves para seu desempenho é a extraordinária taxa de energia que o antilocapra consegue obter do oxigênio que respira, ou seja, sua capacidade aeróbica, que é quatro vezes maior que a de um campeão olímpico da maratona.
Só que um desempenho desses exige uma taxa de gordura baixíssima, o que reduz a resistência desses animais. Se for preciso, um antilocapra pode vencer até 50 quilômetros sem perder o pique. Mas, depois dessa distância, seu combustível se esgota.

Lições de camelo
Ao longo da evolução, os animais assumiram formas e comportamentos diversos. Mas seu metabolismo é bastante parecido. E, quando se trata de exercício prolongado, todos têm um problema em comum: o superaquecimento. Para nos exercitarmos, precisamos de alta temperatura nos músculos. Ao correr, aumentamos o metabolismo de 1,5 quilocalorias por minuto para 30 quilocalorias por minuto. Para evitar que esse excesso de calor leve à exaustão, cada animal tem sua estratégia. As abelhas se besuntam com o néctar que colhem. Alguns pássaros defecam nas próprias pernas. Nós suamos.
Ou seja: podemos continuar correndo, sem superaquecimento, enquanto tivermos fluidos suficientes para seguir suando. O detalhe é que nosso corpo tem uma capacidade limitada de armazenar água. Em busca de um modelo perfeito, Heinrich examinou o rei da secura, o animal em que todo mundo pensa quando se fala em cruzar grandes distâncias sem água: o camelo. Camelos andam freqüentemente muito além de 100 quilômetros. Viajam os 300 quilômetros entre Cairo, no Egito, e a Jordânia em dois dias. Homens também são capazes de correr 600 quilômetros em quatro dias e sobrevivem para correr ainda mais. Yiannis Kouros, um corredor grego (provavelmente o maior especialista em grandes distâncias de todos os tempos), correu 1 500 quilômetros em dez dias – uma média de 150 quilômetros por dia. Mas a comparação com o camelo é injusta, porque Kouros comeu e bebeu o quanto quis no caminho.
Por milhares de anos acreditou-se que os camelos armazenavam água no estômago. Mas não é verdade. Pesquisas recentes não encontraram nenhuma capacidade extra de estocar água no camelo. O truque do animal é outro: ele economiza a água que tem, por meio de alguns mecanismos engenhosos. O primeiro são as corcovas. Acreditava-se que elas eram uma espécie de caixa-d’água que o animal carregava para todo canto. Mas não é isso que ocorre. Compostas basicamente de gordura, elas funcionam mais como uma cesta cheia de alimento que o animal carrega nas costas e vai consumindo aos poucos. A utilidade delas na perda de água é a sombra que proporcionam e o revestimento de pêlos que as cobre, o que reduz o aquecimento do animal e evita que perca água pelo suor.
Mas o animal tem outros truques. Humanos morrem se perderem água equivalente a 12% do peso do corpo. O camelo sobrevive com perdas de até 40%. Depois de desidratado, ele pode beber até 25% do peso do corpo em água, de uma vez. Em nós, o efeito seria tóxico: as células do sangue inchariam e poderíamos até morrer se bebêssemos água em excesso.
Não bastasse tudo isso, a urina e o suor do camelo são mais concentrados, graças a mecanismos que envolvem micróbios em seu estômago. Assim, consegue se aliviar sem gastar tanta água. Se um camelo ficasse à deriva em um bote no oceano, não morreria de sede: ele pode reidratar-se tomando água salgada, o que para nós é fatal.
Segundo Heinrich, as estratégias do camelo nos dão grandes lições: 1) use uma corcova, ou seja, cubra a cabeça com chapéu e o corpo com roupas leves e soltas, para evitar perder líquidos. 2) Beba líquidos durante o caminho, mas um pouco de cada vez.

Os truques dos sapos
Sapos não são nenhum exemplo de bom deslocamento. Não correm, saltam. Eles estão longe da performance dos cangurus, que atravessam grandes distâncias em alta velocidade, graças aos saltos. Mas eles têm muito a ensinar aos corredores. Anualmente, na época do acasalamento, os sapos se reúnem aos bandos em charcos e lagoas e dão início a uma competição de coaxadas, uma atividade tão aeróbica quanto qualquer maratona. Nessa empreitada, os sapos chegam a utilizar 100% de sua capacidade aeróbica. Para se ter uma idéia, ultramaratonistas, a elite da capacidade aeróbica humana, durante as provas, utilizam 60% de seu potencial.
O risco de coaxar tão perto do limite é grande. Um ser humano que corresse acima do limite de sua capacidade aeróbica, mesmo que por poucos segundos, ficaria exausto rapidamente, graças ao acúmulo de ácido lático, que enrijece os músculos. Depois que esse mecanismo ocorre, é preciso um bom tempo de descanso, para que o ácido seja eliminado. Para um sapo, isso significaria perder a chance de copular com as fêmeas. Para um corredor, seria ir para casa antes do fim da corrida.
Assim, ao longo de milhões de anos de evolução, os sapos desenvolveram sistemas de segurança para coaxarem perto do limite mas sem ultrapassá-lo. O segredo é manter um ritmo constante, sem acelerar ou diminuir, e dar coaxadas curtas. Nem sempre isso resolve: no eterno embate que é a seleção natural, as fêmeas desenvolveram um gosto especial pelos machos que conseguem dar as coaxadas mais longas. Mas os que se apressam nessa tarefa correm o risco de acabar sem voz antes da cantada final.
É o que fazem também maratonistas e ultramaratonistas: passos curtos. Fundistas percorrem os 100 metros finais de uma prova com quase o dobro de passos com que os velocistas vencem a mesma distância. “Passos longos alcançam mais longe, mas cansam o corredor mais rapidamente”, diz Heinrich.

Por que ficar em pé?
Correr em dois pés não é exclusividade humana. Há evidências de que os dinossauros bípedes eram também velocistas, ao contrário dos grandes e lentos quadrúpedes. E há vários animais quadrúpedes que, quando precisam acelerar, usam apenas as patas posteriores. Você mesmo já deve ter enfrentado um dos campeões do reino animal em eficiência das passadas. E já deve ter percebido como é difícil alcançá-lo. Como todos os insetos, as baratas têm seis perninhas e só três tocam o solo ao mesmo tempo em deslocamento. Mas, quando precisam dar uma arrancada, as baratas mudam de tática: abrem as asas, jogam o peso do corpo para trás e se tornam bípedes, fugindo com as duas pernas traseiras.
Ou seja, nossa evolução de quadrúpedes para bípedes também deve ter algo a ver com obtenção de velocidade. Todos os bípedes que correm rápido o fazem por uma sucessão de saltos, alternando as pernas ou usando as duas de uma vez. Isso acarreta um considerável impacto nos pés e, com isso, uma grande perda de energia. Entretanto, um mecanismo desenvolveu-se para conter um pouco dessa energia.
O segredo está na anatomia dos nossos pés. Quando o calcanhar encosta no solo, o tendão-de-aquiles é esticado e, quando o pé rebate, decolando do chão sobre os dedos, o tendão estendido contrai e libera a energia armazenada. Até 40% da energia absorvida pelo impacto é retida no ligamento, para retornar ao corpo durante o próximo passo. Graças a esse design natural, correr descalço poderia melhorar nossa eficiência, desde que, claro, o solado do pé fosse forte o suficiente para resistir ao esfolamento durante longas corridas. Para aqueles que conseguem, essa é uma vantagem e tanto, como o corredor etíope Abebe Bikila, que correu e venceu descalço a maratona nas Olimpíadas de Roma, em 1960.
No nosso caso, a postura ereta trouxe vantagens além da velocidade. Apesar de a corrida sobre dois pés gastar mais energia do que com quatro, para longas distâncias era uma considerável melhora. “A eficiência de energia era sacrificada em favor da liberação das mãos para outras tarefas”, afirma Heinrich. Os primatas podiam segurar objetos e carregar os filhotes. Em pé, também, podiam enxergar mais longe.
Além disso, de pé era reduzido o calor que entrava nos corpos aquecidos pelo sol. Experiências mostram os bípedes têm uma redução de 60% na radiação solar direta sobre o corpo.
Mas com isso o topo da cabeça ficou à mercê dos raios solares. A solução para esse problema também veio com a evolução. O cérebro humano tem uma rede especial de veias que agem como radiadores para dissipar o calor. Fósseis indicam que o Australopitecus já possuía esse mecanismo, o que indica que eles sofreram grande pressão seletiva para prevenir o superaquecimento. “Nosso cabelo evoluiu assim”, diz Heinrich.
Com todo esse aparato que a natureza nos deu, não se espante se, depois de correr da chuva ou perseguir um ônibus, você sentir uma sensação de prazer. Você nasceu feito para isso.

Biologia – O Bipedismo


avestruz
Avestruz africano, o mais veloz bípede vivo

É uma forma de locomoção terrestre, onde um organismo se move por meio de seus dois membros posteriores ou pernas. Um animal ou máquina que normalmente se move desta forma é conhecido como bípede, que significa “dois pés” (do latim bi para “dois” e ped para “pé”).
Poucas espécies modernas são bípedes habituais, quando método de locomoção normal é sobre duas pernas. Dentro dos mamíferos, o bipedalismo habitual evoluiu várias vezes, como entre os Macropodidae (que inclui os cangurus), Dipodomyinae, Notomys, Hominina (humanos) e pangolins, assim como em vários outros grupos extintos que evoluíram esta característica de forma independente. No período Triássico alguns grupos de arcossauros (um grupo que inclui os antepassados dos crocodilos) desenvolveram o bipedalismo; entre os descendentes dos dinossauros, todas as primeiras espécies e muitos grupos posteriores eram bípedes habituais ou exclusivos; as aves descendem de um grupo de dinossauros que eram exclusivamente bípedes.
Um número maior de espécies modernas utilizam movimento bípede por curtos períodos de tempo. Várias espécies de lagartos movem-se de maneira bípede quando estão correndo, geralmente para escapar de ameaças. Muitas espécies de primatas e de urso adotam o bipedalismo para alcançar alimentos ou explorar o ambiente. Várias espécies de primatas arborícolas, como gibões e indrídeos, utilizam exclusivamente a locomoção bípede durante os breves períodos que passam no chão. Muitos animais também apoiam-se sobre as patas traseiras, enquanto lutam, copulam, tentam alcançar a comida ou para ameaçar um concorrente ou predador, mas não conseguem se mover de forma bípede.
A grande maioria dos vertebrados terrestres vivos são quadrúpedes, com o bipedismo exibido apenas por um punhado de grupos vivos. Seres humanos, gibões e grandes pássaros caminham levantando um pé de cada vez. Por outro lado, a maioria dos macrópodes, pássaros menores, lêmures e roedores bípedes se movimenta pulando nas duas pernas simultaneamente. Os cangurus de árvores são capazes de andar ou pular, geralmente alternando os pés quando se movem de forma arbórea e pulando simultaneamente em ambos os pés quando estão no chão.
Muitas espécies de lagartos se tornam bípedes durante a locomoção a alta velocidade, incluindo o lagarto mais rápido do mundo, a iguana-de-cauda-espinhosa (gênero Ctenosaura)
Arquinossauros (inclui pássaros, crocodilos e dinossauros)
Todas as aves são bípedes quando estão no chão, uma característica herdada de seus ancestrais dinossauros.

Outros arcossauros
O bipedismo evoluiu mais de uma vez nos arcossauros, o grupo que inclui dinossauros e crocodilianos. Todos os dinossauros são descendentes de um ancestral totalmente bípede, talvez semelhante a Eoraptor.
Vários grupos de mamíferos existentes desenvolveram independentemente o bipedalismo como sua principal forma de locomoção – por exemplo, humanos, pangolins gigantes, as preguiças gigantes terrestres extintas, numerosas espécies de roedores saltadores e macrópodes. Os seres humanos, como seu bipedalismo tem sido extensivamente estudado, estão documentados na próxima seção.
Primatas
A maioria dos animais bípedes se movimenta com as costas próximas à horizontal, usando uma cauda longa para equilibrar o peso de seus corpos. A versão primata do bipedalismo é incomum porque as costas estão próximas da posição vertical (completamente eretas nos humanos), e a cauda pode estar completamente ausente. Muitos primatas podem ficar de pé nas patas traseiras sem qualquer apoio. chimpanzés, bonobos, gibões e babuínos exibem formas de bipedalismo.
Indivíduos feridos
Ursos, chimpanzés e bonobos feridos têm sido capazes de sustentar o bipedismo.
Humanos
Existem pelo menos doze hipóteses distintas sobre como e por que o bipedismo evoluiu em humanos, e também algum debate sobre quando. O bipedismo evoluiu bem antes do grande cérebro humano ou o desenvolvimento de ferramentas de pedra. Na história da evolução humana, andar ereto remonta pelo menos 6 milhões de anos ao Sahelanthropus, uma espécie antiga com características de humanas e de macacos descoberta a partir de restos fósseis encontrados em Sahel. Uma teoria proeminente é que a mudança climática transformou a paisagem, criando savanas onde as árvores e florestas se encontravam.
Cientistas norte-americanos apontam para uma intervenção cósmica para a evolução do bipedismo humano. A Via Láctea explodiu em milhares de supernovas que começou há cerca de 7 milhões de anos e continuou por milhões de anos. As supernovas detonaram raios cósmicos em todas as direções. Na Terra, a radiação que chegou das explosões atingiu o pico de cerca de 2,6 milhões de anos atrás. Quando os raios cósmicos atingiram o planeta, eles ionizaram a atmosfera e a tornaram mais condutiva. Isso poderia ter aumentado a frequência dos raios, enviando incêndios florestais através das florestas africanas e abrindo caminho para as pastagens.

Por que não vimos nenhum ET ainda?


ETs2
A busca por vida fora do planeta Terra é, cada vez mais, incessante. Por exemplo, não está descartada a existência de algum tipo de vida microbiana abaixo das crostas congeladas de Encélado e Europa (luas de Saturno e Júpiter, respectivamente), e a ciência se dedica, também, a analisar exoplanetas a fim de determinar se há algum indício de vida nesses objetos que orbitam outras estrelas, que não sejam o Sol.

Mas, ainda assim, muitos se perguntam: por que ainda não descobrimos a existência de nenhum ET, com tantos avanços na tecnologia espacial? Bom, segundo um novo estudo publicado no Acta Astronáutica, conduzido por pesquisadores da Universidade de Cadiz, na Espanha, talvez a gente já tenha se deparado com indícios da existência desses seres, mas simplesmente não conseguimos interpretá-los direito.

Isso porque, segundo os pesquisadores, os cientistas humanos tendem a procurar por civilizações alienígenas que tenham alguma característica em comum com as nossas. E essa noção pré-concebida de que a vida como a conhecemos também existe em outras partes do espaço pode justamente estar “cegando” os especialistas quanto a outras possibilidades.

O estudo discute a possibilidade de haver vida alienígena de maneiras completamente diferentes de como a vida na Terra aconteceu, tendo, portanto, características completamente diversas às nossas. “O que estamos tentando fazer é contemplar outras possibilidades”, explicou Gabriel de la Torre, co-autor do estudo. Ele segue vislumbrando “seres de dimensões que nossas mentes sequer podem imaginar, ou inteligências baseadas em matéria escura ou energia escura, que compõem quase 95% do universo e que estamos somente começando a entender.” “Há até a possibilidade de haver outros universos, conforme indicam textos de Stephen Hawking e outros cientistas”, completa.

A fim de provar que os humanos constantemente estão equivocados por conta de suas próprias expectativas, os pesquisadores decidiram fazer um experimento. Eles pediram para que 137 pessoas determinassem se as estruturas e características de diversas fotografias aéreas eram criadas pelo homem, ou se seriam formações naturais. Uma dessas fotos escondia uma minúscula imagem de um gorila para ver se os pesquisados o localizariam, ou não. Então, muitos deles deixaram o animal passar batido, simplesmente porque não estavam procurando especificamente por um gorila ao analisar os cenários.
Esse tipo de situação é chamado de “cegueira por desatenção”, e a equipe sugere que o mesmo possa acontecer com astrônomos que se dedicam a descobrir indícios de vida fora do nosso planeta. Em outras palavras: se não sabemos o que devemos procurar, provavelmente não encontraremos muita coisa – e é exatamente o que pode estar acontecendo na busca por vida extraterrestre.

Por que vemos sempre a mesma face da Lua daqui da Terra?


terra vista da lua
A Lua tem, sim, um movimento de rotação. Mas é verdade, também, que daqui da Terra a gente sempre vê o mesmo lado, ou hemisfério, do satélite natural. Por isso se fala tanto no “lado escuro da Lua”, mas atenção: é errado falar “lado escuro” quando se fala do hemisfério lunar que nunca podemos ver daqui da Terra — o correto é dizer “lado afastado” da Lua.
Voltando à explicação sobre por que vemos sempre o mesmo lado da Lua, isso acontece por causa da rotação sincronizada. A combinação da distância da Lua para a Terra, da gravidade terrestre e da força das marés faz com que o satélite gire em torno de si próprio na mesma velocidade em que translada ao redor do nosso planeta. Assim, fica sempre com a mesma face virada para nós, enquanto a outra fica oculta para nós — e o sentido de “lado afastado” se refere a isso. Este misterioso hemisfério lunar, por sinal, nunca tinha sido visto por nós até 1959, quando a sonda russa Luna 3 o fotografou.
Esse lado afastado é mais robusto do que a face vista da Terra. São menos planícies escuras formadas por antigas erupções vulcânicas, e há uma gigantesca cratera de 180 km de largura, chamada Von Kármán. Essa cratera cobre quase um quarto da circunferência do satélite natural e fica dentro da Bacia do Polo Sul-Aitken.

Os dois lados recebem luz solar direta, em dias que duram cerca de duas semanas terrestres para cada hemisfério. O lado afastado é iluminado durante a fase da Lua Nova; já o lado voltado para a Terra recebe um pouco mais de luz graças à iluminação cinérea, que são raios solares refletidos pelo nosso planeta. No entanto, o satélite natural é considerado um objeto escuro por não emitir luz própria — a Lua não “brilha”, ela apenas reflete a luz solar.
A Lua não é o único satélite natural do Sistema Solar com esta rotação sincronizada, pois outros também mantêm sempre a mesma face virada para seus planetas. É o caso de Caronte, lua de Plutão: ambos estão sempre com a mesma face virada um para o outro, o que levou alguns astrônomos a classificá-los como um sistema binário no passado.

Exploração no lado afastado da Lua

Humanos tiveram a oportunidade de ver o lado afastado da Lua por si próprios, pela primeira vez, em 1968, com a missão orbital Apollo 8. Mas só no século XXI este hemisfério do satélite natural começou a ser mais vastamente explorado pela humanidade.

A China enviou a missão Chang’e 4 para lá, que pousou nesse lado afastado em 3 de janeiro de 2019, tornando-se o primeiro veículo construído pelo ser humano a tocar tal hemisfério lunar. Um rover, o Yutu-2, está naquele solo analisando melhor a superfície levemente diferente da que nossos olhos estão habituados a ver daqui do nosso planeta.
A missão ainda está em andamento e já nos enviou muitas informações interessantes, desde uma foto panorâmica do lado afastado da Lua até análises do solo, que pode ter comprovado uma teoria sobre a Cratera Von Kármán, onde a Chang’e 4 estacionou. De acordo com os dados, essa região pode ter rochas do manto lunar, mas na superfície, o que pode apontar um poderoso impacto ocorrido há quase 4 bilhões de anos.

sonda chinesa

sonda chinesa2