7616 – Medicina – Amargo Regresso


A escandalosa verdade é que os povos mais saudáveis, mais robustos e bem cuidados do planeta estão quase numa situação de índio — sucumbindo a reles ataques de gripe. Assim é com a tuberculose, que até 1985 vinha num entusiasmante declínio histórico nos Estados Unidos. Mas disparou a crescer, desde então, a ponto de o número de casos hoje ser 18% maior que oito anos atrás. Em Nova York, o aumento foi, nada menos, de 150%, cifra que explica perfeitamente o susto no World Trade Canter quando ainda em pé. A ordem aos fun-cionários veio depois da descoberta de que dois deles estavam com a doença. É até possível pensar que houve exagero, já que se tratava de apenas dois casos. O problema é que os nova-iorquinos atingidos são, normalmente, marginais ou moradores de bairros pobres, como o Harlem e o Bronx.
Entre as doenças citadas, num total de uma dezena, mais ou menos, estavam a febre amarela, a malária, a cólera, a candidíase, a gripe comum, a brasileiríssima dengue e a pouco conhecida febre púrpura, também de origem brasileira. Alguns dados relativos ao ano passado ajudam a entender melhor as estranhas tintas que borram o panorama da saúde pública nos Estados Unidos:
*Cerca de 2 milhões de pessoas contraem uma das “novas ” doenças, muitas delas em hospitais.
* Nada menos que 700 pacientes com malária deram entrada em hospitais. A maioria tinha visitado o Panamá, país que apresenta aproximadamente 1 000 novos casos da doença, a cada ano.
* Estima-se que entre 5% e 7% dos americanos tenham giardíase crônica, ou diarréia. O micróbio Giardia é comum também no México e no Caribe, próximos aos Estados Unidos.
* Vinte casos de cólera foram registrados nos Estados Unidos, no ano passado, seis dos quais em Nova York.
* Nesse período, foram registrados 508 casos de febre amarela e 614 de dengue.
Embora os números não pareçam alarmantes, é preciso lembrar que eles representam o regresso de doenças muito fáceis de controlar em qualquer país bem organizado, sem carência de recursos e em que a renda pessoal seja relativamente alta. Além disso, é instrutivo voltar à analogia com as populações indígenas. Elas são frágeis em face de doenças simples apenas porque nunca as tiveram, e assim não desenvolveram defesas orgânicas contra elas. Por incrível que pareça, algo semelhante acontece com a população dos países ricos — estão sendo atacadas, a rigor, por micróbios desconhecidos. Pessoas traquejadas pelos agentes infecciosos de antigamente podem, assim, ser pegos de surpresa por supermicróbios que se comportam de modo bem diferente. Isso acontece, em parte, porque bactérias, protozoários e vírus atuais são versões melhoradas dos seus ancestrais, e resistem aos medicamentos disponíveis.
Um dos motivos por que aparecem supermicróbios são os antibióticos. Estes forçam os microorganismos a mudar, justamente quando exterminam grande número deles: os que resistem podem depois proliferar sem a concorrência de seus iguais. Ou melhor: não tão iguais, pois de alguma forma sobreviveram aos antibióticos. O mecanismo é análogo à evolução das espécies e levam a agentes infecciosos cada vez mais aptos para enfrentar as armas que se têm contra eles. Talvez um bom exemplo seja a bactéria da cólera, responsável pela última grande ofensiva da doença, incluindo-se os 26 casos nos Estados Unidos. Batizada de vibrião El Tor, a nova bactéria não é semelhante ao vibrião clássico, causador de seis grandes epidemias planetárias, desde 1817.
Mas a campeã dos supermicróbios é mesmo a Mycobacterium tuberculosis. Há dez anos, apenas 6% de todas as variedades, ou cepas, desse microorganismo eram resistentes a qualquer remédio para a tuberculose. Hoje, mais de 30% das variedades encontradas em Nova York são resistentes a pelo menos uma droga. Quase 20% das variedades não podem ser combatidas pelos dois principais medicamentos em uso. Algumas variedades estão imunes a qualquer droga, informa a repórter Phyllida Brown, na revista inglesa New Scientist. Ela adverte que nada disso é uma fatalidade da natureza, como se vê por uma avaliação do presidente da Associação Americana para o Pulmão, Lee Reichman. “Tudo isso poderia ter sido evitado. Aconteceu porque não agimos e não temos um sistema de saúde pública adequado.”

De acordo com o Centro de Vigilância Epidemiológica da Inglaterra e do País de Gales, a incidência de malária nessa região aumentou cerca de 28%, nos últimos dez anos. Os britânicos notam que os doentes costumam ser imigrantes indianos — e, na Índia, existem aproximadamente 5 milhões de casos de malária. Os imigrantes asiáticos, de modo geral, são as maiores vítimas de doenças infecciosas na Inglaterra. De acordo com André Dodin, aí pode estar uma das chaves que abrem as portas dos países ricos a micróbios alheios: estes pegam carona na quantidade crescente de pessoas que circulam pelo mundo moderno.
O próprio vibrião El Tor fez vítimas em terras francesas, e algumas delas eram estrangeiras. As estatísticas, certamente, tendem a corro- borar a tese de Dodin. Elas denunciam, por exemplo, que três em cada dez passageiros com destino a Paris vêm de países em desenvolvimento. Em média, essa proporção é a mesma das grandes cidades americanas. Como existem cerca de 500 000 casos de cólera no mundo inteiro, entende-se como é fácil para o vibrião viajar entre dois destinos quaisquer do planeta, seja por navio, automóvel ou avião.